Capítulo 1: O Berço Geográfico e a Visão Pioneira

Antes mesmo do som das picaretas e do clamor dos primeiros assentadores, Ijuí já existia como uma ideia, um ponto estratégico no mapa mental dos planejadores do Rio Grande do Sul. Este capítulo inaugural desvenda as condições geográficas que preexistiam e, mais crucialmente, as decisões e os debates que, em vez de se curvarem à topografia natural, a moldaram e a resignificaram em função de um projeto ambicioso.

1.1. Ijuí: Um local não por acaso – A Concepção em 1890

No final do século XIX, o Rio Grande do Sul vivia um período de intensa transformação e expansão. A recém-proclamada República Brasileira buscava consolidar seu território e impulsionar o desenvolvimento econômico, e a colonização de áreas estratégicas era vista como um motor fundamental para esse progresso. É nesse cenário que surge a ideia de Ijuí. Longe de ser uma fortuita aglomeração de colonos, a cidade foi concebida com um propósito claro e uma visão de futuro que denotava uma abordagem de vanguarda para a época.

Em 1890, Ijuí não era mais do que um conceito, um ponto estratégico no planejamento territorial do estado. Sua missão era atuar como a "porta de entrada para a colonização do noroeste gaúcho". Essa designação não era trivial; implicava em um planejamento meticuloso, na demarcação prévia de terrenos urbanos e rurais, na projeção de infraestruturas e na antecipação das necessidades dos futuros colonos. A "cidadezinha da colônia", como era inicialmente conhecida, teve seu espaço delimitado e suas diretrizes estabelecidas antes mesmo que as primeiras famílias chegassem para habitá-la.

Essa peculiaridade histórica – o planejamento e a estruturação de um assentamento antes de sua efetiva ocupação – é um traço distintivo de Ijuí. Enquanto a maioria das cidades brasileiras floresceu organicamente a partir de caminhos existentes, feitorias, ou comunidades espontâneas, Ijuí foi um ato de vontade, uma tela em branco onde se pintava o futuro. Essa abordagem, em teoria, permitiria a criação de um cenário urbano ideal, otimizado para o crescimento e a funcionalidade. De fato, a ausência de pré-existências significativas oferecia uma liberdade rara para implementar um modelo urbanístico que, aos olhos da época, representava o ápice da racionalidade e da ordem.

1.2. Interesses em conflito: Por que Ijuí não foi às margens do rio?

Apesar da lógica e do potencial, a execução do plano para Ijuí não esteve isenta de embates e negociações. Um dos dilemas fundacionais que poderiam ter alterado radicalmente o curso de sua história foi a localização. Estudos históricos indicam, com certa clareza, que a cidade poderia ter sido estabelecida às margens do rio Ijuí. Uma escolha natural, considerando a importância vital dos cursos d'água para o abastecimento, a navegação e a fertilidade do solo em assentamentos pioneiros. No entanto, o que pareceu um caminho óbvio para os planejadores encontrou barreiras intransponíveis.

A decisão de manter o centro urbano em sua localização atual, afastada das margens do rio, não foi técnica ou ambiental, mas o resultado de um "complexo jogo de forças" que envolvia interesses díspares e, por vezes, conflitantes. Nesse tabuleiro político-econômico, atuavam:

A manutenção da localização original do núcleo urbano foi, portanto, um reflexo direto da vitória de certos interesses sobre outros. É plausível que a proximidade de grandes fazendas de gado, ou a influência de proprietários que não desejavam a fragmentação de suas terras ou a chegada de um novo modelo de povoamento baseado na pequena propriedade, tenha pesado na balança. Essa decisão, ainda que distante do rio, garantiu que a colônia florescesse em um ponto estratégico para a ligação com outras vias e para a eventual chegada da ferrovia, adaptando-se às necessidades e às negociações políticas do momento. Assim, Ijuí começou sua história não apenas como uma cidade planejada, mas também como um símbolo da interação entre a visão idealizada e a pragmática realidade das forças de poder.

1.3. A Picada da Conceição: A semente da colonização

Antes mesmo da formalização do projeto "Ijuhy" em 1890, a região que viria a abrigar a futura cidade já possuía um rudimento de infraestrutura que se mostraria crucial para seu desenvolvimento: a Picada da Conceição. Essa trilha primitiva, mais do que um simples caminho, foi a semente de onde brotaria a colonização.

1.3.1. Abertura da estrada: conectando Cruz Alta e Santo Ângelo (José Gabriel da Silva Lima)

No século XIX, o noroeste gaúcho era um território vasto e, em grande parte, inóspito, coberto por uma densa mata que impunha barreiras significativas às comunicações. 

As cidades de Cruz Alta e Santo Ângelo, importantes centros da época, encontravam-se isoladas pela espessa vegetação, dificultando o trânsito de pessoas, o comércio e a consolidação territorial. Foi em resposta a essa necessidade premente de conexão que o governo provincial determinou a abertura de uma nova estrada.

A tarefa coube ao engenheiro José Gabriel da Silva Lima. Sob sua responsabilidade, a "Picada Conceição" foi concluída em 1856. O termo "picada" é revelador: não se tratava de uma estrada pavimentada ou de larga dimensão, mas de uma trilha rudimentar, aberta na mata, que permitia a passagem de pessoas e, eventualmente, pequenas cargas. Essa iniciativa, embora modesta em sua concepção técnica, foi monumental em seu impacto, pois abriu caminho para a futura ocupação e integração da região.

Mapa da ocupação de Ijuí - Picada da Conceição

Como reconhecimento por seus serviços e para incentivar o assentamento, José Gabriel da Silva Lima foi recompensado com uma extensa área de terras. Essa vasta propriedade, que hoje abrange o distrito de Barreiro em Ijuí, tornou-se um dos primeiros marcos da presença de posseiros e colonos na região. A manutenção dessa via, constantemente ameaçada pelo avanço da vegetação, exigia "constantes trabalhos de limpeza", um esforço contínuo que já indicava o potencial e a necessidade de desenvolvimento daquela área.

1.3.2. Os Primeiros Moradores: os "caboclos"

A narrativa da colonização de Ijuí, frequentemente focada na chegada dos imigrantes europeus, por vezes eclipsa uma presença fundamental: a dos "caboclos" ou "nacionais". Estes eram os primeiros moradores, os verdadeiros pioneiros, que já habitavam a região da futura colônia muito antes do desembarque das massas de imigrantes. Sua importância era inegável; eram eles os responsáveis pelos "constantes trabalhos de limpeza" da Picada da Conceição, assegurando sua transitabilidade e, com isso, pavimentando o caminho para os que viriam.

Descendentes dessas famílias pioneiras, como a família Rosário, ainda hoje habitam o distrito do Barreiro. Sua permanência no território é um elo vivo com os primórdios da colonização, uma lembrança da memória e da presença daqueles que já dominavam o conhecimento da terra, suas matas e seus recursos. A relevância dessa população é inequivocamente evidenciada por um telegrama enviado por José Manoel Siqueira Couto em 1890, ano da fundação oficial da colônia. Nele, Siqueira Couto informava sobre a ocupação de "muitos lotes por 'nacionais'", mesmo antes da demarcação e distribuição formal dos terrenos.

Essa informação é crucial. Ela desmistifica a ideia de um "terra nullius" (terra de ninguém) e revela uma realidade de ocupação pré-existente. Os caboclos, em sua maioria, eram o produto da miscigenação entre indígenas, colonizadores portugueses e, em alguns casos, africanos. Viviam da agricultura de subsistência, da coleta e, notavelmente, da exploração da erva-mate, que era um importante produto comercial para mercados distantes como a Argentina. Sua forma de vida, adaptada ao ambiente de mata e rios, representava um contraste com a monocultura latifundiária das grandes estâncias e, mais tarde, com a pequena propriedade intensiva dos imigrantes europeus. A história de Ijuí, portanto, começa com o encontro – e, por vezes, o conflito – entre esses "nacionais" e as ondas de imigrantes que chegariam em busca de novas terras.

1.3.3. Os Pioneiros da Picada: Simão Hickenbick e outros imigrantes

A promessa de novas terras e oportunidades começou a atrair os primeiros imigrantes europeus para a Picada da Conceição a partir de 1887, anos antes da fundação oficial da Colônia Ijuhy. Esses indivíduos, movidos por uma mistura de esperança e necessidade, foram os verdadeiros desbravadores daquela mata densa, enfrentando o isolamento e as adversidades com coragem.

Entre esses precursores, destaca-se a figura de Simão Hickenbick, um imigrante francês que havia fugido de sua terra natal após a traumática Guerra Franco-Prussiana. Hickenbick representava o espírito do pioneirismo: chegou à região e buscou se estabelecer, enfrentando as dificuldades de viver isolado em um ambiente natural desafiador e desconhecido. Sua experiência de vida era um prenúncio do que muitos colonos viriam a experimentar nos anos seguintes.

Não demorou para que outras famílias, principalmente de origem europeia, seguissem o mesmo caminho, atraídas pela perspectiva de uma nova vida no Brasil. Entre elas, nomes italianos como Vione, Fiorin e Didoné são registrados, indicando a diversidade que começava a caracterizar o assentamento. Esses pioneiros foram os primeiros a se fixarem na área que, posteriormente, viria a ser oficialmente demarcada como a Colônia de Ijuí.

A vida para esses primeiros colonos era um teste diário de resiliência. A adaptação ao clima subtropical, ao solo muitas vezes virgem e às condições precárias de vida na mata eram obstáculos constantes. A falta de infraestrutura básica, como estradas adequadas, comunicação e acesso a serviços médicos, agravava a solidão inerente ao processo de desbravamento. A necessidade de trabalho árduo e contínuo para derrubar a mata, preparar a terra e garantir a subsistência era uma realidade inquestionável. Adicionalmente, as diferenças culturais e, muitas vezes, a falta de experiência agrícola em um ambiente tão distinto do europeu, dificultavam ainda mais o processo. Contudo, foi a partir da persistência e do esforço desses indivíduos que as primeiras picadas de uma nova civilização foram abertas, estabelecendo as bases para a comunidade próspera que Ijuí se tornaria.



1.4. O Positivismo ijuiense e o planejamento urbano

A concepção de Ijuí como uma cidade planejada não foi um mero capricho urbanístico; ela refletia uma profunda influência filosófica e ideológica que permeava o pensamento da elite intelectual e governamental do Brasil pós-Proclamação da República: o positivismo. Essa corrente, que valorizava a ordem, a razão e o progresso como pilares para o desenvolvimento social e científico, deixou suas marcas indeléveis no traçado e na organização espacial de Ijuí, tornando-a um exemplo notável de cidade construída sob esses preceitos.

1.4.1. Augusto Pestana e a ordem e progresso na urbanização

A organização espacial de Ijuí deve muito à visão e ao intelecto de Augusto Pestana. Engenheiro e diretor da colônia, Pestana foi o principal artífice da transposição dos ideais positivistas para a realidade urbana da nascente Ijuí. Formado na primeira turma da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, ele era um entusiasta das ideias de ordem e progresso, e sua gestão foi marcada pela determinação em implementá-las na construção da nova cidade.

O planejamento urbano de Ijuí, com seus "quarteirões padronizados de 100x100 metros" e suas "ruas largas", era um testemunho da aplicação desses princípios. Tal meticulosidade era pouco comum para a época, contrastando com o crescimento orgânico e muitas vezes caótico de outras cidades. A estrutura da cidade foi concebida como um quadrado perfeito, dividido em 64 quadras. As principais avenidas e ruas – Avenida 21 de Abril (lado sul), Rua 12 de Outubro (norte), Rua 13 de Maio (leste) e Rua 19 de Outubro (oeste) – formavam uma grade ortogonal que lembrava uma quadrícula científica. O encontro da Avenida 21 de Abril com a Rua 13 de Maio marcava a "Linha Base", o ponto de partida do desenvolvimento urbano.

Essa organização em quadras retangulares, cortadas por ruas que se cruzam em ângulos retos, criava uma espécie de "malha urbana que lembra um meridiano de Greenwich". Tal estrutura não apenas facilitava a orientação e a futura expansão da cidade de forma lógica e controlada, mas também simbolizava a ordem, a racionalidade e o controle sobre o ambiente. A funcionalidade e a previsibilidade do traçado urbano eram manifestações diretas da crença positivista de que a ciência e a razão poderiam organizar a sociedade de maneira eficiente e progressiva.

1.4.2. A Nomenclatura das ruas: símbolos republicanos

A influência positivista em Ijuí não se restringiu ao desenho físico das ruas e quadras; ela se estendeu de forma simbólica à própria nomenclatura dos logradouros. A escolha dos nomes das ruas de Ijuí não foi aleatória, mas um ato carregado de significado político e ideológico. Ao batizar as vias com nomes de personalidades e datas relevantes para a história republicana do Brasil, os fundadores da cidade, sob a égide do positivismo, buscavam simbolizar e perpetuar os valores da República e do progresso que tanto pregavam.

Essa prática era uma estratégia comum em cidades planejadas daquele período, utilizando a toponímia como uma ferramenta de afirmação identitária e de educação cívica. As ruas se tornavam uma espécie de "museu a céu aberto", onde os cidadãos, ao transitarem, eram constantemente lembrados dos heróis e dos eventos que fundaram o novo regime político. Nomes como "15 de Novembro" (Proclamação da República), "21 de Abril" (referência a Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira), "12 de Outubro" (referência à chegada de Colombo na América, ou talvez a algum evento local menos conhecido, mas associado a ideias de progresso e desbravamento), e "19 de Outubro" (data da fundação da Colônia Ijuhy) serviam como lembretes constantes dos ideais que deveriam reger a sociedade.

Essa simbologia nas ruas visava imbuir os habitantes de um sentimento de pertencimento a uma nação moderna e progressista, afastando-os dos resquícios do período imperial e dos valores tradicionais. A nomenclatura era, portanto, uma forma de expressar a identidade e os ideais da cidade, moldando a consciência cívica dos colonos e seus descendentes e integrando-os a uma narrativa nacional de avanço e civilidade.

1.4.3. A Perda da padronização e o crescimento desordenado

Apesar da rigidez e da ambição do planejamento inicial positivista, a Ijuí que conhecemos hoje reflete as inevitáveis transformações que o tempo e o crescimento impõem a qualquer organismo urbano. Com o passar das décadas, a estrita padronização das quadras e a rigorosa organização espacial concebidas no projeto original foram, em certa medida, se perdendo.







Ijuhy nos primeiros tempos

Essa mudança foi um processo natural e complexo, impulsionado por diversos fatores. A chegada contínua de novos moradores, o crescimento populacional que superou as projeções iniciais e a necessidade imperiosa de adaptar a cidade às novas demandas sociais e econômicas levaram a alterações significativas no plano original. A cidade não podia permanecer uma planta estática frente à dinâmica da vida real.

A partir da década de 1950, o fenômeno do êxodo rural, uma tônica do desenvolvimento brasileiro, teve um impacto profundo em Ijuí. A migração maciça da população do campo para a área urbana provocou um "crescimento desordenado" da cidade. 

A demanda por moradia e a valorização dos terrenos, especialmente nas áreas mais próximas ao centro, incentivaram um processo de loteamento muitas vezes irregular. Novos bairros e expansões surgiram com características urbanísticas mais livres e menos rígidas do que o traçado positivista, com ruas mais estreitas e quarteirões menores, rompendo com a simetria idealizada.

Essa nova dinâmica urbana, embora atendesse às necessidades urgentes de uma população em crescimento, representava um afastamento do rigor original. Contudo, é importante notar que o legado do positivismo não se perdeu completamente. A influência nas linhas retas, nos ângulos retos e na busca pela funcionalidade ainda pode ser observada na arquitetura dos primeiros edifícios e na estrutura central da cidade. Ijuí, portanto, apresenta-se hoje como uma fascinante tapeçaria onde o planejamento meticuloso do passado se entrelaça com as adaptações e o crescimento orgânico do presente. 

Sua história serve como um exemplo vívido de como as ideias e os valores de uma época podem moldar o espaço urbano, mas também como a própria vida da cidade, com suas necessidades e transformações, inevitavelmente reescreve esses planos, mantendo, no entanto, a ambição de seus fundadores de construir uma "cidade moderna e planejada".